A
renúncia do Papa Bento XVI foi inesperada, mas não totalmente imprevisível. Sua
personalidade decidida e algumas breves alusões de que já sentia o peso da
idade tornaram seu gesto bem compreensível. Claro que se trata de um fato
extraordinário, uma vez que a última renúncia de um papa ocorreu no longínquo
ano de 1415. Assim, estávamos habituados a conjugar a eleição de um novo papa
com a morte de seu antecessor.
Diante
desse fato inusitado do gesto do Papa Bento XVI, claro que surgem muitas
interpretações e até mesmo muitas especulações. Numa primeira linha aparecem
perguntas sobre os reais motivos que o levaram a esse gesto. – Ele diz que a
idade avançada não permitiu que exercesse por mais tempo seu ministério. Outros
acrescentam alguma especulação na linha da “pesada carga” dos escândalos que
explodiram durante seu pontificado. E há certamente aqueles que não descartam
pressões de ordem política na alta hierarquia da Igreja.
Claro
que também há análises que sugerem crises na Igreja e até preveem rachaduras
numa Igreja que teria dois papas: o que renunciou e o que lhe sucede por
eleição. A inspiração desse tipo de leitura provém certamente de certas
situações políticas do mundo de hoje: onde, aqui e ali, aparecem tensões há os
que pretendem se perpetuar no poder, mesmo já tendo sucessores legitimamente
eleitos. Mas esse certamente não foi o caso da Igreja neste momento, sobretudo
em se tratando do Cardeal Ratzinger. Ele irá preferir passar seus últimos anos
no silêncio de um mosteiro sem influenciar nem ser influenciado pelo sucessor.
Para
além das especulações, parece bem mais importante interpretarmos o gesto deste
papa em confronto com a atitude de seu antecessor. A ninguém escapa a
originalidade de cada um deles. Duas personalidades, dois perfis, dois carismas.
No entanto, uma leitura mais aprofundada talvez nos propicie outro tipo de
visão, que permitirá o vislumbre de mudanças profundas na compreensão da missão
do ministério dos papas e na identidade profunda da própria Igreja.
João
Paulo II, com um incomparável carisma de comunicador e ardor evangélico,
parecia não poder ser sucedido. No entanto, aos poucos foi sendo percebido que
Bento XVI, com sua fala mansa, ia reunindo multidões sempre maiores de fiéis
que, sem grandes aplausos, saiam das audiências e celebrações públicas
profundamente tocadas pelas palavras de quem, mesmo no exercício de seu
ministério petrino, nunca deixou de ser um exímio teólogo. Mesmo sendo Bento
XVI, nunca deixou de ser o Cardeal Ratzinger, embora agora com uma missão e uma
pedagogia diferentes daquela que exercia durante o pontificado do antecessor.
Prosseguindo
no paralelo, não podemos deixar de perceber que João Paulo II manifestamente
não quis largar a cruz que a idade e a doença lhe impunham de maneira
crescente. Pelo contrário, até a última aparição, com aquele gesto de apoiar as
mãos sobre a janela de seu quarto, deixou uma mensagem inequívoca: não queria
ser novamente hospitalizado, pois sua agonia chegava ao fim e julgava já estar
na hora de voltar para a casa do Pai. Missão cumprida. Ele será para sempre
lembrado como o papa que carregou aos olhos de todo o mundo a imagem do Cristo
crucificado, que bebeu o cálice do sofrimento até a última gota. Com esse gesto
profético deixou uma mensagem perene para o mundo: não é fugindo, mas é
abraçando a cruz que se chega à ressurreição.
A
renúncia voluntária de Bento XVI parece ir no sentido contrário, mas isso
apenas aparentemente. Também ele carregou uma pesada cruz, não tanto física,
mas psíquica e espiritual. Não fugiu dela. No entanto, em sua compreensão, o
papado é um ministério, um serviço a ser cumprido enquanto ele tem condições
para prosseguir na missão que lhe foi confiada. Talvez nem todos notem, mas
este também é um gesto profético: perceber os sinais dos tempos e deixar que
outro, em condições mais favoráveis, ocupe o lugar que não pertence a um ser
humano, mas ao próprio Filho de Deus. A Igreja só conhece um Único Pastor, que
é Jesus Cristo. Os demais são servos do Pastor dos Pastores. Os papas não são
deuses, mas simples mortais, com todos os condicionamentos que esse fato
comporta.
Mas
o significado profético do gesto de Bento XVI parece apontar para ao menos duas
outras direções. A primeira, para o sentido e a missão da própria Igreja. Ela
também é humana, e profundamente humana. Carrega nas mãos um tesouro precioso,
mas em frágeis vasos de barro. A segunda direção apontada por Bento XVI pode
parecer muito arrojada, mas certamente marcará para sempre a história da
Igreja. Daqui para frente os papas se sentirão impelidos tanto a imitar João
Paulo II, sem medo de mostrar sua fragilidade, quanto a imitar Bento XVI: todos
têm seu tempo, e chega um momento em que é preciso propiciar as condições para
que outro tome o mesmo bastão e prossiga com mais força a grandiosa missão que
não foi confiada a este ou àquele ser humano, mas à Igreja, sempre guiada por
Jesus Cristo.
Enfim,
este é certamente um momento histórico que deixará marcas para todo o sempre.
As marcas de duas faces de um mesmo rosto: os ministérios exercidos na Igreja
comportam a coragem de não fugir da cruz, mas igualmente a coragem de ceder o
lugar a quem poderá proclamar com maior vigor a mensagem do Evangelho, que
tanto se revela na fraqueza quanto na força; ambas manifestações do mesmo
mistério da Cruz e da Ressurreição. À luz do Evangelho, o maior é sempre aquele
que se faz o menor, e se faz o menor tanto o que morre com a cruz sobre os
ombros e aos olhos de todos quanto aquele que passa a carregar sua cruz no
silêncio de um mosteiro.
Fonte: http://www.antoniomoser.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário