sábado, 5 de outubro de 2013

Dois Papas: Dois gestos proféticos conjugados de um único rosto da Igreja




A renúncia do Papa Bento XVI foi inesperada, mas não totalmente imprevisível. Sua personalidade decidida e algumas breves alusões de que já sentia o peso da idade tornaram seu gesto bem compreensível. Claro que se trata de um fato extraordinário, uma vez que a última renúncia de um papa ocorreu no longínquo ano de 1415. Assim, estávamos habituados a conjugar a eleição de um novo papa com a morte de seu antecessor.

Diante desse fato inusitado do gesto do Papa Bento XVI, claro que surgem muitas interpretações e até mesmo muitas especulações. Numa primeira linha aparecem perguntas sobre os reais motivos que o levaram a esse gesto. – Ele diz que a idade avançada não permitiu que exercesse por mais tempo seu ministério. Outros acrescentam alguma especulação na linha da “pesada carga” dos escândalos que explodiram durante seu pontificado. E há certamente aqueles que não descartam pressões de ordem política na alta hierarquia da Igreja.

Claro que também há análises que sugerem crises na Igreja e até preveem rachaduras numa Igreja que teria dois papas: o que renunciou e o que lhe sucede por eleição. A inspiração desse tipo de leitura provém certamente de certas situações políticas do mundo de hoje: onde, aqui e ali, aparecem tensões há os que pretendem se perpetuar no poder, mesmo já tendo sucessores legitimamente eleitos. Mas esse certamente não foi o caso da Igreja neste momento, sobretudo em se tratando do Cardeal Ratzinger. Ele irá preferir passar seus últimos anos no silêncio de um mosteiro sem influenciar nem ser influenciado pelo sucessor.

Para além das especulações, parece bem mais importante interpretarmos o gesto deste papa em confronto com a atitude de seu antecessor. A ninguém escapa a originalidade de cada um deles. Duas personalidades, dois perfis, dois carismas. No entanto, uma leitura mais aprofundada talvez nos propicie outro tipo de visão, que permitirá o vislumbre de mudanças profundas na compreensão da missão do ministério dos papas e na identidade profunda da própria Igreja.

João Paulo II, com um incomparável carisma de comunicador e ardor evangélico, parecia não poder ser sucedido. No entanto, aos poucos foi sendo percebido que Bento XVI, com sua fala mansa, ia reunindo multidões sempre maiores de fiéis que, sem grandes aplausos, saiam das audiências e celebrações públicas profundamente tocadas pelas palavras de quem, mesmo no exercício de seu ministério petrino, nunca deixou de ser um exímio teólogo. Mesmo sendo Bento XVI, nunca deixou de ser o Cardeal Ratzinger, embora agora com uma missão e uma pedagogia diferentes daquela que exercia durante o pontificado do antecessor.

Prosseguindo no paralelo, não podemos deixar de perceber que João Paulo II manifestamente não quis largar a cruz que a idade e a doença lhe impunham de maneira crescente. Pelo contrário, até a última aparição, com aquele gesto de apoiar as mãos sobre a janela de seu quarto, deixou uma mensagem inequívoca: não queria ser novamente hospitalizado, pois sua agonia chegava ao fim e julgava já estar na hora de voltar para a casa do Pai. Missão cumprida. Ele será para sempre lembrado como o papa que carregou aos olhos de todo o mundo a imagem do Cristo crucificado, que bebeu o cálice do sofrimento até a última gota. Com esse gesto profético deixou uma mensagem perene para o mundo: não é fugindo, mas é abraçando a cruz que se chega à ressurreição.

A renúncia voluntária de Bento XVI parece ir no sentido contrário, mas isso apenas aparentemente. Também ele carregou uma pesada cruz, não tanto física, mas psíquica e espiritual. Não fugiu dela. No entanto, em sua compreensão, o papado é um ministério, um serviço a ser cumprido enquanto ele tem condições para prosseguir na missão que lhe foi confiada. Talvez nem todos notem, mas este também é um gesto profético: perceber os sinais dos tempos e deixar que outro, em condições mais favoráveis, ocupe o lugar que não pertence a um ser humano, mas ao próprio Filho de Deus. A Igreja só conhece um Único Pastor, que é Jesus Cristo. Os demais são servos do Pastor dos Pastores. Os papas não são deuses, mas simples mortais, com todos os condicionamentos que esse fato comporta.

Mas o significado profético do gesto de Bento XVI parece apontar para ao menos duas outras direções. A primeira, para o sentido e a missão da própria Igreja. Ela também é humana, e profundamente humana. Carrega nas mãos um tesouro precioso, mas em frágeis vasos de barro. A segunda direção apontada por Bento XVI pode parecer muito arrojada, mas certamente marcará para sempre a história da Igreja. Daqui para frente os papas se sentirão impelidos tanto a imitar João Paulo II, sem medo de mostrar sua fragilidade, quanto a imitar Bento XVI: todos têm seu tempo, e chega um momento em que é preciso propiciar as condições para que outro tome o mesmo bastão e prossiga com mais força a grandiosa missão que não foi confiada a este ou àquele ser humano, mas à Igreja, sempre guiada por Jesus Cristo.

Enfim, este é certamente um momento histórico que deixará marcas para todo o sempre. As marcas de duas faces de um mesmo rosto: os ministérios exercidos na Igreja comportam a coragem de não fugir da cruz, mas igualmente a coragem de ceder o lugar a quem poderá proclamar com maior vigor a mensagem do Evangelho, que tanto se revela na fraqueza quanto na força; ambas manifestações do mesmo mistério da Cruz e da Ressurreição. À luz do Evangelho, o maior é sempre aquele que se faz o menor, e se faz o menor tanto o que morre com a cruz sobre os ombros e aos olhos de todos quanto aquele que passa a carregar sua cruz no silêncio de um mosteiro.
 

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